19.3.16

os inimigos íntimos da democracia

[Goya | Los desastres de la guerra]

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Por que é perigoso o projeto de impor o Bem? Supondo-se que se conheça a sua natureza, seria preciso declarar guerra a todos os que não compartilham do mesmo ideal, e eles ameaçam ser numerosos. Como escrevia Charles Péguy no início do século XX: "Na declaração dos Direitos Humanos há o suficiente para fazer guerra a todo mundo, durante a duração de todo o mundo"! Vítimas incontáveis seriam necessárias para alcançar o futuro radioso. Mas a natureza desse ideal também é problemática. Basta dizer "liberdade" para ficarmos todos de acordo? Não sabemos que os tiranos do passado invocavam regularmente a liberdade? Além disso, pode-se clamar, como faz o documento presidencial americano, negligenciando milênios de história humana, que “esses valores de liberdade são justos e verdadeiros para toda pessoa, em toda sociedade”? Somos verdadeiramente a favor de toda liberdade, incondicionalmente, inclusive, como se diz, a da raposa no galinheiro? E o que vem fazer a “livre empresa” entre os valores universais, deve-se travar guerra contra todos os países que praticam uma economia estatizada? Quanto à “democracia” e à igual dignidade de todos os membros do gênero humano que ela implica, será que ainda à estamos praticando quando impedimos os outros povos de escolher por eles mesmos seu destino?

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...uma publicação oficial do governo americano, datada de abril de 2009, revelou a regulamentação inacreditavelmente minuciosa da tortura, formulada nos manuais da CIA e retomada por conta própria pelos responsáveis jurídicos do governo. Pois é esta a novidade: a tortura já não é representada como infração - lamentavelmente mas desculpável - à norma: ela é a própria norma.

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O contágio se espalha bem além do círculo limitado dos torturadores: vários outros grupos de profissionais se envolvem na prática de suplícios. Conselheiros jurídicos do governo se mobilizam para assegurar a impunidade legal de seus colegas e fornecer uma legitimação para seus atos. Regularmente estão presentes psicólogos, psiquiatras, médicos, mulheres (os torturadores são homens, mas o aviltamento sob o olhar das mulheres agrava a humilhação). Enquanto isso, professores universitários produzem as justificações morais, legais ou filosóficas da tortura. A tortura marca de maneira indelével o corpo dos torturados, mas também corrompe a mente dos torturadores. Progressivamente, a sociedade inteira se vê atingida por esse câncer insidioso, esse ataque ao pacto fundamental que liga uns aos outros os cidadãos de cada país democrático, pacto segundo o qual o Estado é o fiador da justiça e do respeito por todo o ser humano. Um Estado que legaliza a tortura não é mais uma democracia.

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Uma das mais poderosas ameaças que pairam sobre nossas democracias, escreve o juiz Serge Portelli, "é a de uma sociedade de segurança absoluta, de tolerância zero, de prevenção radical, de prisão preventiva, de desconfiança sistemática em relação ao estrangeiro, de vigilância e de controle generalizado". Assim é que nos tornamos nosso próprio inimigo, e um dos piores que existem.

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Antes de entoar um hino à glória de uma nova conflagração verdadeiramente melhor do que todas as outras, talvez fosse preferível meditar sobre as lições que Goya extraiu, duzentos anos atrás, de outra guerra conduzida em nome do Bem, aquela dos regimentos napoleônicos que traziam a liberdade e o progresso aos espanhóis. Os massacres cometidos em nome da democracia não são mais fáceis de sofrer do que os causados pela fidelidade a Deus ou Alá, ao Guia ou ao Partido. Uns e outros conduzem aos mesmos desastres da guerra.

Tzvetan Todorov | 2012
Trad.: Joana Angélica