13.10.16

abstração mediatizada e mediação abstrata


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A repressão que se abate sobre o rebelde libertário se abate sobre todos os homens. O sangue de todos os homens corre com o sangue dos Durruti assassinados.

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A meu ver, é muito grande a indiferença das pessoas quando em certas épocas se vê o mundo tomar as formas de metafísica dominante. A crença em Deus e no Diabo, por mais bizarra que seja, faz desses dois fantasmas uma realidade viva logo que uma coletividade os julga presentes o suficiente para inspirar os textos das suas leis. Do mesmo modo, a estúpida distinção entre causa e efeito foi capaz de reger a sociedade na qual os comportamentos humanos e os fenômenos em geral eram analisados em tais termos. E ainda hoje, ninguém pode subestimar a dicotomia aberrante entre pensamento e ação, teoria e prática, real e imaginário... essas são forças da organização. O mundo da mentira é um mundo real: nele se mata e se morre, é melhor que não se esqueça isso. Enquanto ironizamos sem dó o apodrecimento da filosofia, os filósofos contemporâneos se retiram com um sorriso de entendidos por trás da mediocridade do seu pensamento: sabem ao menos que o mundo continua a ser uma construção filosófica, um grande sótão ideológico. Sobrevivemos numa paisagem metafísica. A mediação abstrata e alienante que me afasta de mim mesmo é terrivelmente concreta.

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Julgamos viver no mundo, mas na verdade adotamos uma perspectiva. Não mais a perspectiva simultânea dos pintores primitivos, mas a dos racionalistas do Renascimento. Dificilmente os olhares, os pensamentos, os gestos escapam à atração do longínquo ponto de fuga que os ordena e os altera, situando-os no seu espetáculo. O poder é o maior urbanista. Ele loteia a sobrevivência em partes privada e pública, compra a preço baixo os terrenos roçados, proíbe que se construa sem passar pela suas normas. Ele próprio constrói para expropriar cada um de si mesmo. Os seus construtores de cidades invejam esse estilo monolítico sem graça, e o imitam ao substituir a velha arquitetura confusa da santa hierarquia por regiões de magnatas, bairros de funcionários, blocos de trabalhadores (como em Mourenx).

A reconstrução da vida, a reedificação do mundo: uma única e mesma vontade.

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O poder é a soma das mediações alienadas e alienantes

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A mediação do poder exerce uma chantagem permanente sobre o imediato. É claro que a ideia de que um gesto não pode ser completar na totalidade das suas implicações reflete exatamente a realidade de um mundo empobrecido, de um mundo da não-totalidade, mas ao mesmo tempo reforça o caráter metafísico dos fatos, a sua falsificação oficial. O senso-comum é um compêndio de falsidades como: "Os chefes são sempre necessários", "Sem a autoridade a humanidade se precipitará na barbárie e nos caos" e assim por diante. É verdade que o hábito mutilou de tal modo o homem que ele pensa que, ao mutilar-se, obedece à lei natural. Talvez seja também o esquecimento de sua própria perda que o amarra tão bem ao pelourinho da submissão. Seja como for, condiz à mentalidade do escravo associar o poder à única forma de vida possível: a sobrevivência. E cabe aos desígnios do senhor encorajar esse sentimento.


Raoul Vaneigem | 1967
Trad.: Leo V.