18.11.16

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A ferocidade se aprende
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Seguir os percursos do narcotráfico e da lavagem de dinheiro faz com que você se sinta capaz de medir a verdade das coisas. Entender os destinos de uma eleição política, a queda de um governo. Escutar as palavras oficiais começa a não ser mais suficiente. Enquanto o mundo tem uma direção bem precisa, tudo, no entanto, parece se concentrar em algo diferente, talvez banal, superficial. A declaração de um ministro, um acontecimento minúsculo, a fofoca. Mas quem decide tudo é outra coisa. Esse instinto está na base de todas as escolhas românticas. O jornalista, o narrador e o diretor gostariam de contar como é o mundo, como é realmente. Dizer aos seus leitores, aos seus espectadores: não é como vocês acham, é assim. Não é como vocês acreditavam, agora vou abrir a ferida através da qual vocês podem espiar a verdade suprema. Mas ninguém jamais consegue totalmente. O risco é acreditar que a realidade, a verdadeira, pulsante, determinante, está completamente escondida. Se você tropeça e cai nessa, começa a achar que tudo são conspirações, reuniões secretas, associações e espiões. Que nada jamais aconteceu como parece ter acontecido. Essa é a idiotice típica de quem narra. É o início da miopia de um olho que julga são: fazer o círculo do mundo quadrar nas suas interpretações. Mas não é assim tão simples. A complexidade está justamente em não acreditar que tudo está escondido ou que tudo é decidido em salas secretas. O mundo é mais interessante do que uma conspiração entre serviços de inteligência e seitas. O poder criminoso é uma mistura de regras, desconfiança, poder público, comunicação, ferocidade, diplomacia. Estudá-lo é como interpretar textos, como se tornar entomologista.


A aula

[...]


Com o tempo me convenci de que não conservamos somente na cabeça as coisas que recordamos, elas não estão todas na mesma zona do cérebro; me convenci de que outros órgãos também tem uma memória. O fígado, os testículos, as unhas, o peito. Quando você ouve as palavras finais, elas ficam grudadas ali. E quando essas partes se lembram, enviam o que registraram ao cérebro. Não raro me dou conta de me lembrar de algo com o estômago, que armazena o belo e o horrendo. Sei que estão ali certas lembranças, sei disso porque o estômago se mexe. E às vezes a barriga também. É o diafragma que cria ondas: uma lâmina delgada, uma membrana plantada ali, com as raízes no centro do nosso corpo. É dali que tudo parte. O diafragma faz você bufar, enraivecer-se, arrepiar-se, mas também mijar, defecar, vomitar. É dali que parte o impulso durante o parto. E também estou certo de que há pontos que recolhem o pior: conservam os dejetos. Não sei onde é esse ponto dentro de mim, mas ele está cheio. E agora está saturado, tão repleto que não cabe mais nada. Meu espaço das lembranças, ou melhor, dos dejetos, está farto. Poderia parecer uma boa notícia: não há mais espaço para a dor. Mas não é. Se os dejetos não têm mais aonde ir, começam a se meter onde não devem. Se enfiam nos espaços que recolhem memórias diversas.


Roberto Saviano