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Um futuro indeciso, narrativas sem desenlace.
Escrever com base na iminência, no que ainda não é, não significa se abstrair
do social. É aparecer em um lugar onde o mundo pode ser pensado como algo que
poderia ser de outro modo. A literatura não se situa em um nada a-histórico,
mas nessa enunciação poética que desafia a prosa mutável do mundo.
Ao falar do que poderia ser de outra maneira, a
escrita literária faz política. Conta como os deuses fugiram e como regressaram
nas onipotências das empresas, na milagrosa irradiação das máfias.
Quando Holderlin escrevia, a pergunta era como viver
na época dos deuses que se foram e do deus que ainda não chega; no tempo de
Dostoieviski, a interrogação foi se, não havendo deus, tudo está permitido.
Hoje, quando a disputa pelo todo ocorre entre os equivalentes profanos das
deidades, que são o totalitarismo financeiro dos bancos, os rituais vazios com
que o servem os políticos, sua transculturação em grupos criminosos e as
revelações sempre parciais da espionagem, na literatura nos perguntamos se é
possível atuar com outro sentido: ser escritor e leitor é o modo incerto com
que deciframos o que poderia significar ser cidadão. Não reduzo a política à
literatura, nem digo que esta vai nos emancipar. Escrever e ler são, apenas,
ações com que tentamos fazer que o poder aniquilador e atordoante dos atuais
deuses seja só uma intriga. Sem fim predefinido.
Néstor G. Canclini
Trad.: Larissa F. Locoselli