14.12.16

por que existe a literatura e não o nada


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Um futuro indeciso, narrativas sem desenlace. Escrever com base na iminência, no que ainda não é, não significa se abstrair do social. É aparecer em um lugar onde o mundo pode ser pensado como algo que poderia ser de outro modo. A literatura não se situa em um nada a-histórico, mas nessa enunciação poética que desafia a prosa mutável do mundo.

Ao falar do que poderia ser de outra maneira, a escrita literária faz política. Conta como os deuses fugiram e como regressaram nas onipotências das empresas, na milagrosa irradiação das máfias.


Quando Holderlin escrevia, a pergunta era como viver na época dos deuses que se foram e do deus que ainda não chega; no tempo de Dostoieviski, a interrogação foi se, não havendo deus, tudo está permitido. Hoje, quando a disputa pelo todo ocorre entre os equivalentes profanos das deidades, que são o totalitarismo financeiro dos bancos, os rituais vazios com que o servem os políticos, sua transculturação em grupos criminosos e as revelações sempre parciais da espionagem, na literatura nos perguntamos se é possível atuar com outro sentido: ser escritor e leitor é o modo incerto com que deciframos o que poderia significar ser cidadão. Não reduzo a política à literatura, nem digo que esta vai nos emancipar. Escrever e ler são, apenas, ações com que tentamos fazer que o poder aniquilador e atordoante dos atuais deuses seja só uma intriga. Sem fim predefinido.

Néstor G. Canclini
Trad.: Larissa F. Locoselli