21.6.17

dez fragmentos sobre a literatura contemporânea no brasil e na argentina ou de como os patetas sempre adoram o discurso do poder




Ressalto que até hoje, 45 anos depois do golpe, até onde sei, não existe nenhum romance de peso que analise a vida de caserna brasileira. Não vá alguém dizer que nossos militares não se prestam à sátira: as recentes declarações de um deles, de patente elevadíssima, chamando atenção para o perigo de que os índios que moram na reserva Raposa Serra do Sol representam para a unidade nacional são um prato cheio para nossos ficcionistas, mas aposto que ninguém vai aproveitar. Aqui, citando ainda os romances argentinos Villa, de Luis Gusman, e Duas vezes junho, de Martín Kohan, chamo a atenção para uma diferença entre as duas literaturas em questão: na Argentina, um esforço para criticar as instituições. No Brasil, as instituições continuam intocáveis, talvez com exceção da corrupção policial.

Os argentinos [...] não aguardaram as memórias para fazer ficção. A literatura no Brasil, porém, simplesmente esqueceu a ditadura militar, deixando-a relegada a poucos textos, no mais das vezes de fôlego estético reduzido. Ao contrário, o que surgiu aqui foi a recriação ficcional da chamada violência urbana, uma espécie de assombração das classes médias e altas e um problema real para as classes baixas. [...] A história, por sua vez, via entre nós a confirmação de que nem os militares e nem a força policial deveriam ser julgados pelos abusos, até porque são eles que garantem a continuidade da paranoia com relação à violência, repito que apenas um artifício para esconder a mais selvagem opressão econômica. [...] Os anos 1990 na Argentina foram outros: militares torturadores começaram a ser levados à justiça. A literatura por lá, no entanto, vem repetindo desde aquela época: é pouco, somos historicamente alienados.

... ao negar um lugar político inevitável, os nossos autores estão na verdade tentando esconder o seu conservadorismo.

Um dado curioso: a crítica literária profissional acata a produção literária da periferia, mas não se pronuncia com o mesmo entusiasmo sobre a falta de acesso dessa mesma periferia às instituições de ensino gratuito.

Sabemos que os países que levaram seu aparelho repressivo à justiça tiveram seus índices de violência posteriormente diminuídos.

Nicolas Sarkozy adoraria a nova geração de escritores brasileiros.

... a literatura brasileira contemporânea abandonou qualquer inquietação séria quanto ao seu país e praticamente assumiu o pacto com o discurso do poder econômico e político.

A dificuldade que nossos autores enfrentam para enxergar o próprio tempo tem óbvias consequências conservadoras, já que nos atrasa estética e historicamente.

Em resumo, a literatura brasileira abandona o sentido de negatividade e de resistência ao senso comum e, ao contrário, se alia a ele. Como as classes média e alta estão desde a redemocratização preocupadas com o próximo e hipotético sequestro, a bala perdida, o assalto e sei lá mais qual item do seu álbum de paranoia, não é interessante para a literatura brasileira contemporânea discutir o que nos resta da ditadura, muito menos pedir punição pelos seus crimes. Até porque a instituição que naquela época torturava comunistas, agora tortura qualquer um que vai para em suas mãos. Então, para essas mesmas classes, bem como para a nossa literatura, não convém incomodar essas pessoas.

Se criarmos uma linguagem contra a impunidade, com certeza fortaleceremos as condições para que a justiça formal finalmente cumpra suas obrigações.

... os anos de ditadura não foram, de fato, tratados como deveriam.

E, para voltar de vez ao meu início, concluo com uma pergunta feita por Salinas Fortes, no final de Retrato calado: "E tudo ficará na mesma? Os mesmos senhores de sempre continuarão tranquilos, comandando como se nada tivesse acontecido?". O dia em que a ficção brasileira puder responder "não, os torturadores estão presos", nossa literatura voltará a ser digna de artistas que, em sua época, desafiaram todo tipo de poder, como para terminar por cima, Graciliano Ramos e Machado de Assis.

R. L.