26.6.17

Direito à literatura

Estêncil | 2017

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Certos bens são obviamente incompressíveis, como o alimento, a casa, a roupa. Outros são compressíveis, como os cosméticos, os enfeites, as roupas supérfluas. Mas a fronteira entre ambos é muitas vezes difícil de fixar, mesmo quando pensam nos que são considerados indispensáveis. O primeiro litro de arroz de uma saca é menos importante do que o último, e sabemos que com base em coisas como esta se elaborou em Economia Política a teoria da "utilidade marginal", segundo a qual o valor de uma coisa depende em grande parte da necessidade relativa que temos dela. O fato é que cada época e cada cultural fixam os critérios de incompressibilidade, que estão ligados à divisão da sociedade em classes, pois inclusive a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra. Na classe média brasileira, os da minha idade ainda lembram o tempo em que se dizia que os empregados não tinham necessidade de sobremesa nem de folga aos domingos, porque não estando acostumados a isso, não sentiam falta... Portanto, é preciso ter critérios seguros para abordar o problema dos bens incompressíveis, seja do ponto de vista individual, seja do ponto de vista social. Do ponto de vista individual, é importante a consciência de cada um a respeito, sendo indispensável fazer sentir desde a infância que os pobres e desvalidos têm direito aos bens materiais (e que portanto não se trata de exercer caridade), assim como as minorias têm direito à igualdade de tratamento. Do ponto de vista social é preciso haver leis específicas garantindo este modo de ver.

Por isso, a luta pelos direitos humanos pressupõe a consideração de tais problemas, e chegando mais perto do tema eu lembraria que são bens incompressíveis não apenas os que asseguram a sobrevivência física em níveis decentes, mas os que garantem a integridade espiritual. São incompressíveis certamente a alimentação, a moradia, o vestuário, a instrução, a saúde, a liberdade individual, o amparo da justiça pública, a resistência à opressão etc.; e também o direito à literatura.

Mas a fruição da arte e da literatura estaria mesmo nesta categoria? Como noutros casos, a resposta só pode ser dada se pudermos responder a uma questão prévia, isto é, elas só poderão ser consideradas bens incompressíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustação mutiladora. A nossa questão básica, portanto, é saber se a literatura é uma necessidade deste tipo. Só então estaremos em condições de concluir a respeito.

Chamarei de literatura, da maneira mais ampla possível, todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos de folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações.

... a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas. 

A produção literária tira as palavras do nada e as dispõe como todo articulado. [...] A organização da palavra comunica-se ao nosso espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo. Isto ocorre desde as formas mais simples, como a quadrinha, o provérbio, a história de bichos, que sintetizam a experiência e a reduzem a sugestão, norma, conselho ou simples espetáculo mental.

A eficácia humana é função da eficácia estética, e portanto o que na literatura age como força humanizadora é a própria literatura, ou seja, a capacidade de criar formas pertinentes.

Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.

O que há de grave numa sociedade como a brasileira é que ela mantém com a maior dureza a estratificação das possibilidades, tratando como se fossem compressíveis muitos bens materiais e espirituais que são incompressíveis. Em nossa sociedade há fruição segundo as classes na medida em que um homem do povo está praticamente privado da possibilidade de conhecer e aproveitar a leitura de Machado de Assis ou Mário de Andrade. Para ele, ficam a literatura de massas, o folclore, a sabedoria espontânea, a canção popular, o provérbio. Estas modalidades são importantes e nobres, mas é grave considerá-las como suficientes para a grande maioria que, devido à pobreza e à ignorância, é impedida de chegar às obras eruditas.

Para que a chamada literatura erudita deixe de ser privilégio de pequenos grupos, é preciso que a organização da sociedade seja feita de maneira a garantir uma distribuição equitativa de bens. Em princípio, só numa sociedade igualitária os produtos literários poderão circular sem barreiras, e neste domínio a situação é particularmente dramática em países como o Brasil, onde a maioria da população é analfabeta, ou quase, e vive em condições que não permitem a margem de lazer indispensável à leitura. Por isso, numa sociedade estratificada deste tipo a fruição da literatura se estratifica de maneira abrupta e alienante.

Como seria a situação numa sociedade idealmente organizada com base na sonhada igualdade completa, que nunca conhecemos e talvez nunca venhamos a conhecer?

Utopia à parte, é certo que quanto mais igualitária for a sociedade, e quanto mais lazer proporcionar, maior deverá ser a difusão humanizadora das obras literárias, e, portanto, a possibilidade de contribuírem para o amadurecimento de cada um.
Nas sociedades de extrema desigualdade, o esforço dos governos esclarecidos e dos homens de boa vontade tenta remediar na medida do possível a falta de oportunidades culturais. Nesse rumo, a obra mais impressionante que conheço no Brasil foi de Mário de Andrade no breve período em que chefiou o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo, de 1935 a 1938. Pela primeira vez entre nós viu-se uma organização da cultura com vista ao público mais amplo possível. Além da remodelação em larga escala da Biblioteca Municipal, foram criados: parques infantis nas zonas populares; bibliotecas ambulantes, em furgões que estacionavam nos diversos bairros; a discoteca pública; os concertos de ampla difusão, baseados na novidade de conjuntos organizados aqui, como quarteto de cordas, trio instrumental, orquestra sinfônica, corais. A partir de então a cultura musical média alcançou públicos maiores e subiu de nível, como demonstram as fichas de consulta da Discoteca Pública Municipal e os programas de eventos, pelos quais se observa diminuição do gosto até então quase exclusivo pela ópera e o solo de piano, com incremento concomitante do gosto pela música de câmara e a sinfônica. E tudo isso concebido como atividade destinada a todo o povo, não apenas aos grupos restritos de amadores.

O problema da desigualdade social e econômica, está o problema da intercomunicação dos níveis culturais. Nas sociedades que procuram estabelecer regimes igualitários, o pressuposto é que todos devem ter a possibilidade de passar dos níveis populares para os níveis eruditos como consequência norma da transformação de estrutura, prevendo-se a elevação sensível da capacidade de cada um graças à aquisição cada vez maior de conhecimentos e experiências. Nas sociedades que mantêm a desigualdade como norma, e é o caso da nossa, podem ocorrer movimentos e medidas, de caráter públicos ou privado, para diminuir o abismo entre os níveis e fazer chegar ao povo produtos eruditos.

As classes dominantes são frequentemente desprovidas de percepção e interesse real pela arte e a literatura ao seu dispor, e muitos dos seus segmentos as fruem por mero esnobismo, porque este ou aquele autor está na moda, porque dá prestígio gostar deste ou daquele pintor.

O que há mesmo é espoliação, privação de bens espirituais que fazem falta e deveriam estar ao alcance como um direito.

Antonio Candido | 1988