24.8.17

“Venham e ajudem-nos”

estêncil: Chomsky | 2017

A inspiradora expressão “cidade no alto de uma montanha” foi cunhada por John Winthrop em 1630, que a tomou de empréstimo do Novo Testamento para delinear o glorioso futuro de uma nova nação ordenada por Deus”. Um ano antes, a Colônia da Baía de Massachusetts – que Winthrop ajudou a fundar – havia estabelecido o seu Grande Selo, que retratava um índio com um pergaminho saindo da boca. No pergaminho estão as palavras “Venham e ajudem-nos”. Os colonos britânicos eram, portanto, humanistas benevolentes, respondendo aos apelos dos miseráveis nativos para serem salvos de seu amargo destino pagão.

O Grande Selo é, a bem da verdade, uma representação gráfica da “ideia de Estados Unidos” desde o seu nascimento. Deveria ser exumado das profundezas da psique norte-americana e exibido nas paredes de todas as salas de aula. Certamente deveria figurar como pano de fundo de toda a adoração ao estilo Kim Il-Sung daquele assassino e torturador selvagem Ronald Reagan, que bem-aventuradamente se descreveu como o líder de uma “cidade reluzente no alto de uma montanha” enquanto orquestrava alguns dos crimes mais hediondos em seus anos na presidência, notoriamente na América Central e também em outros lugares.

O Grande Selo foi uma proclamação precoce de “intervenção humanitária”, para utilizar o termo anualmente em voga. Como tem sido habitual desde então, a “intervenção humanitária” resultou em catástrofe para seus supostos beneficiários. O primeiro secretário da Guerra dos EUA, o general Henry Knox, descreveu “a extirpação total de todos os indígenas nas regiões mais populosas da União” por meios “mais destrutivos para os nativos que a conduta dos conquistadores do México e do Peru”.

Muito tempo depois que as suas próprias contribuições significativas para o processo ficaram no passado, John Quincy Adams lamentou o destino “dessa raça infeliz de norte-americanos nativos, que estamos exterminando com uma crueldade tão impiedosa e pérfida em meio aos hediondos pecados desta nação, os quais acredito que Deus um dia haverá de julgar”. A “crueldade implacável e pérfida” continuou até que “o Oeste foi conquistado”. Em vez do julgamento de Deus, os tais hediondos pecados hoje rendem apenas elogios pela realização da “ideia” estadunidense.

Houve, por certo, uma versão mais conveniente e convencional da narrativa, expressa, por exemplo, pelo juiz da Suprema Corte Joseph Story, que ponderou que “a sabedoria da Providência” levou os nativos a desaparecer como “as folhas murchas e secas do outono”, embora os colonos os tenham “respeitado constantemente”. 

A conquista e a colonização do Oeste demonstraram de fato “individualismo e iniciativa”; empreendimentos em que há colônias de povoamento, a mais cruel forma de imperialismo, comumente utilizada. Os resultados foram saudados pelo respeitado e influente senador Henry Cabot Lodge, em 1898. Ao exigir uma intervenção em Cuba, Lodge enalteceu o nosso histórico “de incomparáveis conquista, colonização e expansão territorial, inalcançadas por qualquer povo no século XIX”, e insistiu que “não deveria ser refreado agora”, uma vez que os cubanos também estavam nos pedindo, nas palavras do Grande Selo: “Venham e ajudem-nos”. 

O pedidod de Lodge foi atentido. Os Estados Unidos enviaram tropas, impedindo, assim, a libertação de Cuba da Espanha e transformando a ilha numa colônia norte-americana, situação que perdurou até 1959.

Mais adiante, a “ideia estadunidense” foi ilustrada pela extraordinária campanha, iniciada quase que imediatamente pela administração Eisenhower, para recolocar Cuba em seu devido lugar: guerra econômica (com o objetivo claramente articulado de punir a população para que derrubasse o desobediente governo Castro); invasão; dedicação dos irmãos Kennedy no sentido de levar a Cuba “os terrores da Terra” (a expressão do historiador Arthur Schlesinger Jr. em sua biografia de Robert Kennedy, que considerava a tarefa como uma de suas maiores prioridades), e outros crimes, desafiando a opinião pública mundial praticamente unânime.

Volta e meia aponta-se a tomada de Cuba, Porto Rico e Havaí em 1898 como a origem do imperialismo norte-americano. Mas isso é sucumbir ao que o historiador do imperialismo Bernard Porter chama de “falácia da água salgada”, a ideia de que a conquista só se torna imperialismo quando atravessa água salgada. Assim, se o rio Mississippi se assemelhasse ao mar da Irlanda, a expansão rumo ao Oeste teria sido imperialismo. De George Washington a Henry Cabot Lodge, os que estavam empenhados no empreendimento tinham uma compreensão mais clara da verdade.

Depois do sucesso da intervenção humanitária em Cuba em 1898, o passo seguinte na missão atribuída pela Providência foi conceder “as bênçãos da liberdade e da civilização a todas as pessoas salvas” das Filipinas (nas palavras da plataforma do Partido Republicano de Lodge) – pelo menos aos filipinos que sobreviveram ao ataque assassino e à prática da tortura em grande escala e outras atrocidades que acompanharam a investida. Essas almas afortunadas foram deixadas à mercê da polícia filipina instalada pelos EUA conforme um modelo recém-concebido de dominação colonial, calcado em forças de segurança treinadas e equipadas para sofisticadas modalidades de vigilância, intimidação e violência. Modelos similares seriam adotados em muitas outras áreas onde os EUA impuseram guardas nacionais brutais e outras forças clientes com consequência que deveriam ser bem conhecidas.

Noam Chomsky
Trad.: Renato Marques