11.11.17

ditadura Vargas incinerou em praça pública 1.640 livros de Jorge Amado

1912-2001


Em novembro de 1937, militares baianos queimaram, a mando de Getúlio Vargas, centenas de livros de Jorge Amado onde hoje é a Praça Cayru, na Avenida Contorno

Jorge Ramos 
Especial para o CORREIO

Perplexas, centenas de pessoas se aglomeraram em frente à Escola de Aprendizes de Marinheiros, em Salvador, no fim da tarde daquela sexta-feira - 19 de novembro de 1937 - para assistir a um espetáculo inusitado. Em frente ao que hoje é a sede do Segundo Distrito Naval, na Avenida Contorno, uma grande fogueira de livros ardia, grossos rolos de fumaça escureciam o céu e um forte cheiro de papel queimado se espalhava pelas imediações da parte baixa do Elevador Lacerda e atingia até mesmo a parte alta, a Praça Municipal, a Rua Chile e a Praça da Sé.

Não era um incêndio comum, mas a queima de 1.827 livros considerados “propagandistas do credo vermelho”, como eram chamados pelos militares que, nos dias anteriores, tinham percorrido as livrarias da cidade e apreendido quantos exemplares encontraram. Entre os livros que viraram cinzas naquela tórrida tarde primaveril em Salvador, 1.694 - mais de 90% - eram de autoria de um jovem jornalista e escritor baiano: Jorge Amado.

Os militares baianos cumpriam ordens do interventor recém-nomeado para a Bahia, o coronel Antônio Fernandes Dantas, comandante da VI Região Militar. O episódio gerou curiosamente uma ata, que foi publicada quase um mês depois da fogueira literária pelo jornal Estado da Bahia, de propriedade dos Diários Associados, do magnata da imprensa Assis Chateubriand. O documento (veja reprodução ao lado) serve para demonstrar o quanto havia de intolerância e forte tensão naqueles anos que antecederam a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Sob a lupa da repressão estavam os ideais do jovem Jorge.

Oprimidos

Então com 25 anos, ele já conquistara notoriedade como autor de uma temática fortemente social, de romances considerados “proletários”. Jorge Amado expunha as mazelas do capitalismo, a exploração do trabalho pelo capital e a luta de classes, dissecados em meio a uma saborosa prosa de feição modernista, nas quais exaltava, ao mesmo tempo, a sensualidade do povo baiano, suas crenças e tradições, o folclore e a cultura popular.

Jorge Amado começava a se destacar internacionalmente com a tradução de seus livros, inicialmente para países da América Latina. E era, justamente por isso, um dos mais visados entre os intelectuais brasileiros. Esquerdista, 
ele já tinha sido preso no ano anterior pela polícia política de Getúlio Vargas, na repressão que se seguiu à Intentona Comunista, levante militar promovido pelo proscrito Partido Comunista Brasileiro (PCB) no Rio de Janeiro, antecedido por iguais sedições em Natal e Recife, movimentos revoltosos duramente reprimidos.

Colegas

Além dos militantes comunistas, passaram a ser perseguidos na época muitos jornalistas e escritores, poetas e artistas engajados na oposição a Getúlio Vargas, fossem ou não filiados ao PCB. Exemplo de José Lins do Rego, escritor paraibano que não era comunista, e até nutria simpatias pelo integralismo, mas teve vários de seus livros, como Menino de Engenho, arrastados para a fogueira.

Além de Jorge Amado, foram presos naquele ano o líder do PCB, Luiz Carlos Prestes, e a mulher dele, Olga Benário, o militar Agildo Barata, o jornalista Aparício Torelly (o “Barão de Itararé”), o advogado Hermes Lima e o escritor Graciliano Ramos, que retratou magistralmente a saga que vivera no clássico Memórias do Cárcere, onde está uma frase lapidar, que simboliza o eterno conflito entre a liberdade intelectual e o poder discricionário: “Começamos oprimidos pela sintaxe e acabamos às voltas com a Delegacia de Ordem Política e Social”.

Censura

A perseguição às obras de Jorge Amado não era novidade. Desde cedo ele sentiu a mão pesada da censura. Cacau, lançado em 1933, esteve ameaçado de não ter a publicação autorizada pelo governo Vargas. Liberado graças a intervenções de amigos, vendeu em um mês dois mil exemplares, fato que catapultou o autor para a fama. A sua ficção, tida como subversiva, lhe rendeu processos, a prisão e, mais tarde, o exílio.

Estava preso quando da publicação de Mar Morto, em 1936. Novamente detido em 1937, poucos dias antes da instalação da ditadura do Estado Novo, foi na prisão que soube da queima de seus livros em praça pública, entre os quais o recém-lançado Capitães da Areia, que retrata o submundo em que viviam os hoje chamados meninos de rua.

Exatos nove dias antes da incineração, o presidente Getúlio Vargas dera um golpe de Estado: fechou o Congresso Nacional, assembleias legislativas e câmaras municipais em todo o país. Extinguiu também todos os partidos políticos, nomeou interventores para substituir os governadores eleitos, instituiu a censura à imprensa e ordenou a prisão de “elementos comunistas”.

Era a ditadura do Estado Novo, que outorgou uma nova Constituição, de cunho marcadamente fascista, e pôs o Brasil em Estado de Guerra, com a supressão de direitos civis e liberdades democráticas, perseguindo ferozmente quem professasse a ideologia comunista. Ou apenas simpatizasse e até mesmo tivesse publicado algo que pudesse ser entendido como de tendência esquerdista. E foi assim que a literatura de Jorge virou fogueira em praça pública.