1.3.18

o indivíduo, a sociedade e o estado

1869-1940

O pensamento humano sempre foi deturpado pelas tradições, os costumes, a educação mentirosa e injusta, distribuídos para servir os interesses dos que detêm o poder e gozam de privilégios; isto é, para servir o Estado e as classes dominantes.

A parte central da essência da individualidade é a expressão, o senso de dignidade e da independência eis o seu terreno predileto. A individualidade não é o conjunto de reflexos impessoais e mecânicos que o Estado considera como um "indivíduo".

Individualismo de direita é o deixa fazer econômico e social: a exploração das massas pelas classes dominantes com a ajuda da velhacaria legal, a degradação mental e o doutrinamento sistemático da mentalidade servil, processo conhecido pelo nome de "educação".

O Estado, o governo, qualquer que seja sua forma, característica ou tendência, quer seja autoritário, ou constitucional, monárquico ou republicano, fascista, nazista ou bolchevique é, por sua própria natureza, conservador, estático, intolerante e oposto à mudança.

Nosso sistema político e social não tolera o indivíduo com sua constante necessidade de inovação. É, portanto, em estado de "legítima defesa" que o governo oprime, persegue, pune e às vezes mata o indivíduo, sendo ajudado por todas as instituições cujo objetivo é preservar a ordem existente. Ele recorre a todas as formas de violência e é apoiado pelo sentimento de "indignação moral" da maioria contra o herético, o dissidente social, o rebelde político, maioria essa em que se inculcou desde séculos o culto do Estado, educada na disciplina, na obediência e na submissão à autoridade e no respeito a ela, cujo eco se faz ouvir em casa, na escola, na igreja e na imprensa. A melhor muralha da autoridade é a uniformidade.

No presente momento, o indivíduo é apenas um peão no tabuleiro da ditadura e nas mãos de fanáticos do "individualismo à americana". Só encontramos marionetes boas apenas para votar e pagar impostos.

Os interesses do Estado e os do indivíduo são fundamentalmente antagônicas. O Estado e as instituições políticas e econômicas que ele instaurou não podem sobreviver senão modelando o indivíduo, a fim de que ele sirva a seus interesses, eles o condicionam no respeito à lei e à ordem, ensinando-lhe obediência, submissão e fé absoluta na sabedoria e na justiça do governo; exigem antes de tudo o total sacrifício do indivíduo quando o Estado precisa dele, em caso de guerra, por exemplo. O Estado considera seus interesses como superiores à queles da religião e deus. Pune até em seu escrúpulos religiosos ou morais o indivíduo que se recusa a combater seu semelhante, porque não há individualidade sem liberdade, e esta é a maior ameaça que pode pesar sob a autoridade.

As perseguições contra o inovador, o dissidente, o contestador, sempre foram causadas pelo temor de que a infalibilidade da autoridade constituída seja questionada e seu poder solapado.

O homem só conhecerá a verdadeira liberdade, individual e coletiva, quando se libertar da autoridade e de sua fé nela. A evolução humana nada mais é que uma penosa caminhada nessa direção. Correr a 150 quilômetros por hora não é prova de civilização. É pelo indivíduo, autêntico modelo social, que se mede nosso grau de civilização; é por suas faculdades individuais, pelas possibilidades de ele ser livremente o que é, de desenvolver-se e progredir sem intervenção da autoridade coercitiva e onipotente.

Socialmente falando, a civilização e a cultura devem ser medidas pelo grau de liberdade e pelas possibilidades econômicas de que goza o indivíduo; devem ser igualmente medidas pela unidade e pela cooperação social e internacional, sem restrição legal ou qualquer outro obstáculo artificial; pela ausência de castas privilegiadas; por uma vontade de liberdade e dignidade humanas. Em resumo, o critério de civilização é o grau de emancipação real do indivíduo.

O poder corrompe e degrada tanto o senhor quanto o escravo, esteja esse poder nas mãos do autocrata, do parlamento ou do soviete. Mas o poder de uma classe é ainda mais pernicioso do que o do ditador, e nada é mais terrível do que a tirania da maioria.

O homem aspira libertar-se de todas as formas de autoridade e poder, e não são os discursos estrepitosos que o impedirão de romper para sempre seus grilhões.

Emma Goldman